Essa sou eu tentando
Talvez a vida não saia exatamente como eu imagino, talvez meu futuro não seja perfeito, e isso pode não ser inteiramente culpa minha
Eu me cobro muito e isso não é novidade.
Quando não passei no vestibular de primeira, achei que minha vida estava acabada. Eu tinha só 17 anos e, eventualmente, as coisas se acertaram e entrei na universidade que eu tanto queria poucos meses depois. A questão é que, naquele singelo momento em que percebi a ausência do meu nome na lista de aprovados, o mundo parou.
Eu não estava sozinha em casa quando vi a lista, então fiz o possível para me controlar. Olhei para a parede, respondi às perguntas. Ninguém sabia que o chão abaixo dos meus pés estava sendo coberto por rachaduras que, em breve, cederiam. Porém, no momento em que a visita foi embora e fiquei completamente sozinha, me permiti sentir…aquilo.
Enquanto eu subia as escadas de volta para o apartamento, meu corpo tremia. Mal conseguia segurar o corrimão e, quando passei pela porta, não sabia o que estava acontecendo comigo. Eu era eu, mas não era. Havia me tornado um fantasma, um espectro de expectativas frustradas que vagava pela casa sem ter ideia do que fazer.
Então, eu cometi o meu maior erro daquele dia: me sentei em frente a minha escrivaninha, peguei meu celular e abri o Instagram. Uma chuva de stories vitoriosos desabou sobre mim. Vi as publicações dos meus amigos, conhecidos, até inimigos, conquistando a aprovação no vestibular. Era uma grande parte deles. A maioria comemorava, e eu deveria parabenizá-los pela novidade. Suas vidas mudariam a partir de então, eles seriam universitários, tudo seria diferente. Mas eu não podia compartilhar aquele sentimento, porque eu não tinha passado. Eu era uma garota sentada de frente para o mar, sozinha, e observava todos que eu conhecia dentro de um navio, indo explorar novos horizontes, mas eu não poderia acompanhá-los naquela viagem.
A realidade me atingiu em cheio quando larguei o celular. De fantasma, eu me transformei em um oceano e chorei. Chorei sem parar, tão alto que escutei meus próprios soluços. Mil questionamentos varreram a minha cabeça: o que eu fiz de errado? Por que não fui o suficiente? Eu sempre fui a aluna inteligente, a filha que nunca deu trabalho, então por que não consegui aquilo? Eu merecia. Eu precisava.
Senti meus lábios ficarem secos e busquei uma água com gás. Quando abri a garrafa, só me deitei na cama. Não tinha prestado atenção que o Spotify estava ligado no computador e notei apenas quando this is me trying, da Taylor Swift, começou a tocar.
Eu ri enquanto escutava a letra e me agarrava àquelas palavras como se elas fossem um bote salva-vidas. Eu era um corpo no colchão, segurando uma garrafa gelada na mão e me consolando com músicas tristes para afastar o vazio que já se espalhava. Foi então que comecei a racionalizar meus sentimentos, óbvio. Pensei: ok, seca as lágrimas. Te matricula num cursinho. Vamos tentar de novo. E aquilo me acalmou. Aquelas eram ações que eu podia controlar.
Eu sequei as lágrimas e me levantei da cama. Eu me matriculei num cursinho e fiquei dois meses lá, porque logo depois começaram a sair as listas de chamadas posteriores da universidade e meu nome estava em uma delas. No entanto, me lembro pouco da comemoração tardia. O que me marcou de verdade foi encarar o teto do meu quarto, ouvindo a voz da Taylor no meu ouvido e sentindo as bolhinhas da água com gás estalando na minha garganta e ter a certeza absoluta, mesmo que por um instante, de que eu era um fracasso.
Revivi esse momento na terapia diversas vezes, analisando-o através de diversas perspectivas para compreender minhas reações. Eu sabia que aquele vestibular era, originalmente, um treino e que eu não tinha obrigação nenhuma de passar de primeira, eu iria apenas tentar. Minha família não estava me pressionando, aquela não deveria ser a prioridade máxima no meu último ano de escola, eu poderia entrar no cursinho e me esforçar com mais foco depois. Contudo, eu mesma coloquei aquele peso sobre os meus ombros. Talvez por arrogância e a total certeza de que eu passaria, porque eu sou inteligente. Porque eu conseguiria. Porque a vida me devia aquilo, depois de eu ter estudado tanto no ensino médio e ter passado pela Pandemia, mas a vida não me deve nada.
A grande verdade era que eu não aceitei que eu poderia tentar alguma coisa. Apenas tentar por tentar, sem a obrigação absoluta de conseguir na primeira vez. Até hoje esse sentimento é desconfortável para mim. Como assim posso tentar fazer as coisas e não conseguir logo de primeira? Isso diria que eu sou um fracasso, uma fraude. Eu estaria perdendo meu tempo ao me esforçar em algo que não trará resultados imediatos, porque também sou uma pessoa impaciente.
No entanto, como eu preciso afirmar para mim mesma várias vezes, o fato de eu tentar fazer as coisas e não conseguir logo de primeira não atesta que eu sou um fracasso. Atesta que eu sou simplesmente humana. Uma criaturinha feita de carne, sangue, ossos, sonhos que morre de medo de não realizar e de expectativas autoimpostas que pode não cumprir. E isso — não sei como estou prestes a escrever essa declaração — pode não ser inteiramente culpa minha.
Ufa.
Saiu.
Nossa, minha terapeuta deve estar soltando fogos de artifício agora. Espero que ela se sinta minimamente orgulhosa, foram muitos anos de trabalho para que eu conseguisse admitir isso. Talvez a vida não saia exatamente como eu imagino, talvez meu futuro não seja perfeito, e isso pode não ser inteiramente culpa minha! Que noção libertadora e apavorante. Que privilégio é admitir que eu posso tentar, somente, e me sentir orgulhosa por isso. Poder dizer que não, eu ainda não consegui, mas eu estou tentando e isso é o suficiente.
Quem dera eu tivesse pensado assim aos 17 anos, mas sei que a afirmação ainda será muito necessária até que crie raízes em mim. Até que eu extermine o medo paralisante que palavras como ‘fracasso’ causam no meu corpo. Nunca mais quero voltar a me sentir como um fantasma. Quero me sentir humana. E humanos não são perfeitos, pois são seres que tentam. E essa sou eu tentando.
Nossa, sensacional! 🥹❤️🩹